O fim da (minha) inocência
 



Cronicas

O fim da (minha) inocência

Ana Maria Pereira Lopes


- Mãe, o que é 69?

Assim, na saída da escola, meu corpo ficou sem alma por alguns segundos. A pergunta que o Gui me fez, no auge dos seus bem vividos dez anos, não tinha uma resposta no livrinho daquele curso de pais oferecidos pela maternidade meses antes do nascimento. Afinal, o mais importante é aprender a trocar fraldas, não é mesmo? Sabia que não tinha muito tempo, e qualquer reação estranha, escandalosa, ou não identificada, acabaria com a confiança dele em mim para sanar a tão delicada dúvida.

Entre esse vácuo de segundos, quarentona que sou, fui buscar uma boa explicação lembrando de quando eu comecei a lidar com essas questões. Era início dos anos 90. Cidade pequena, praieira, no sul de Santa Catarina. Nessa época, o ápice era assistir à novela Top Model, saber todas as gírias, pedir músicas na rádio local, torcendo para o locutor não falar quando estávamos gravando as mais pedidas na fita cassete. Rede Social era na esquina de casa, onde todos se reuniam para falar mal de quem não estava ali. Aventura era arrumar um grupo de corajosos para apertar uma campainha e sair correndo, rir da roupa, do cabelo ou do aparelho nos dentes de alguém. Sorte era estar na janela, ou na frente de casa bem na hora do paquera passar pela rua. O Google era uma coleção de enciclopédias. O mundo das celebridades era revelado apenas nas revistas tipo Contigo e Caras, que eu lia edições do mês anterior em consultórios ou salões de beleza. O tempo não me parecia passar tão rápido.

- Mãe? Você ouviu? Eu fiz uma pergunta.

Estava toda nostálgica. Tocava "Spending My Time" tocava como fundo sonoro das minhas memórias, quando me gelou a espinha de novo. Esperei minha alma voltar. Com a desculpa de um trânsito complicado, perguntei se poderíamos conversar quando eu estacionasse o carro. Precisava de uma resposta de sucesso que não fosse anulada pelo VAR certeiro dos amigos. Sentados no banco do parquinho do bairro, me fiz da idade dele. Conversamos como meus pais nunca fizeram comigo. Ouvi e fui ouvida. Tentei o meu melhor considerando esse passado de enciclopédias, telefones fixos e cursos para pais gestantes. Pobre do meu filho!

Rimos. Perguntei se queria apertar uma campainha e correr comigo. Ele me lembrou das câmeras nas casas do bairro. Explicou como não é legal rir de alguém de aparelho, e que eu mesma já tinha dito isso a ele. Pediu para brincar mais no parquinho e, confiante, disse que eu poderia perguntar qualquer coisa que eu não soubesse pra ele. Afinal, precisava me atualizar do que eu achava que já sabia: a minha inocência, agora perdida.


Ana Maria Pereira Lopes, quando criança, contava histórias de astronautas que mergulhavam e compunham músicas. Agora, é uma dona de casa expatriada, mãe de dois, vivendo seus sonhos de escriba.

 

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